quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Tradicionalismo

A propósito de uma entrevista do compositor Nei Lisboa, publicada no segundo caderno do jornal Zero Hora do dia 25 de janeiro, na qual o compositor afirmou que “tudo em torno” da música gauchesca lhe parece “muito ruim, estética, ideológica e musicalmente”. “A música gaúcha se torna intragável para qualquer pessoa mais esclarecida.(...) Eles foram absurdamente reacionários, a música começou a ser tutelada em termos do que vestir e não vestir em cima do palco”

Seguiram-se reações diversas, principalmente no blog do jornalista Giovani Grizotti, a começar por ele mesmo, seguindo-se uma matéria publicada no mesmo jornal em 16 de fevereiro e ainda no blog do compositor. Muitos saíram em defesa de um e do outro e gerou-se a polêmica.

Estudo a história do Rio Grande do Sul de longa data, participei ativamente em grupos de danças tradicionalistas e de culinária gaúcha e freqüentei diversos CTG. Aos poucos me fui afastando, mas nunca deixei de apreciar a essência do tradicionalismo do Rio Grande do Sul. Sua historia, costumes, culinária, gastronomia e danças.

Vejo com muita tristeza as expressões exaltadas e às vezes grosseiras que partem de pessoas que defendem o tradicionalismo, assim como de quem se posiciona contra.

O antagonismo faz parte da natureza humana e daí que desde os primórdios da humanidade existe a guerra, expoente máximo da intolerância quando se esgotam os argumentos.

Creio que para entender um pouco a dificuldade de tolerância entre grupos opostos e, neste caso, dos que defendem o tradicionalismo dos que não o defendem e até o criticam, é preciso remontar a história do Rio Grande do Sul.

O tradicionalismo gaúcho atual tem as suas normas ditadas pelo MTG (Movimento Tradicionalista Gaúcho), entidade fundada em 1966, oficializando e organizando o movimento surgido a partir de 1947 por iniciativa de três nobres gaúchos: Barbosa Lessa, Paixão Cortes e Glaucus Saraiva, mantendo vivo o ideal de outro grande gaúcho: Cezimbra Jacques, que em 1889 fundou o Grêmio Gaúcho.

Independentemente de classe social, tendência política ou religiosa a este movimento tradicionalista gaúcho, foram aderindo pessoas identificadas com os seus princípios, opiniões e interpretação da história. O movimento sofreu as influências da vida moderna, das correntes políticas, culturais e até esportivas. Entretanto é inegável a abrangência do MTG no Estado do Rio Grande do Sul, em outros Estados e até no exterior.

Mas é muito importante destacar que o tradicionalismo gaúcho não se limita ao MTG. Existem outras correntes tradicionalistas históricas de menor expressão e talvez, não organizadas, que cultuam a história e a tradição do Rio Grande do Sul.

É notável que o MTG e todas as entidades a ele vinculadas, embora cultuem as tradições rio-grandenses em sua amplitude histórica, tenham como marco principal e mais popular a Revolução Farroupilha, homenageando seus heróis, seus marcos vitoriosos e sua ideologia.

Este marco histórico na vida do Rio Grande do Sul e do Brasil, que contrapôs as forças regionais chamadas republicanas contra o Império do Brasil, teve duração de dez anos (1835/1845).
Muitos esquecem que nessa guerra lutaram gaúchos republicanos contra gaúchos imperialistas. Mesmo entre seus generais, houve quem lutou ora de um lado, ora do outro, na minha opinião, seguindo o rumo dos seus interesses econômicos, muito além do amor à pátria.

O genuíno tradicionalismo gaúcho remonta á vida dos habitantes do Pampa desde a implantação das reduções jesuítas em 1554. Desde então e principalmente com a introdução do gado trazido pelos padres da Companhia de Jesus, a vida do gaúcho se relaciona ao campo onde habitava o gado.

Pode-se atribuir às coroas de Espanha e Portugal o antagonismo nascido entre os habitantes dessas terras, que sem entender direito o que se passava a milhares de quilômetros entre os reis de Espanha e Portugal, eram empurrados para um lado ou para outro sem piedade e com brutalidade, gerando reações dos primitivos habitantes: os índios guaranis, gês e pampeanos.

Data daquela época a contínua beligerância entre os povos desta parte da América. O povo do Rio Grande do Sul sofreu na pele as mudanças de humor dos Reis de Espanha e Portugal e foi tomando partido e posição. Na prática tudo se limitava a interesses materiais. Os reinos ibéricos incentivaram a posse e defesa de grandes áreas de terras. Na falta de exércitos que controlassem e guardassem seus territórios, os monarcas distribuíam terras a alguns privilegiados contanto que a defendessem e marcassem seus territórios, ora de domínio da Espanha, ora de Portugal.

Os genocídios humanos patrocinados pelos portugueses e espanhóis contra os índios nativos não têm paralelo na historia e lamentavelmente é pouco conhecido.

As continuas guerras que se seguiram nada mais foram do que a tomada de partido de grupos com interesses distintos por bens materiais. Mascarados sob bandeiras como o patriotismo ou ideologias políticas, as matanças se sucederam durante centenas de anos e de certa forma continuam acontecendo.

O tradicionalismo é uma expressão do sentimento que as pessoas tem em preservar costumes, modos, aí incluídos: a música, a dança, a comida, a vestimenta, a linguagem, os cultos, os relacionamentos e pelo lado material: os objetos, a terra.

Assim como uma família preserva seu nome, sua ideologia, seus costumes, os objetos dos seus antepassados, um povo se preocupa em preservar a sua historia e por essa razão se juntam e se defendem. Mas basta que o interesse de um seja contrariado ou ameaçado para que uma família se divida, um povo se separe, uma nação se destrua, uma sociedade morra.

Dependendo da intensidade das paixões, uma pequena divergência de opinião deriva numa agressão mais severa e muitas vezes em brutalidade.

A história nos revela a consciência de um povo, seu estado de espírito, suas rivalidades atuais, algo como “diz-me com quem andas e te direi quem és”.

As iniciativas de grupos em preservarem as suas tradições são sem duvida um ato que enaltece a sociedade, a família, a fortalece e dignifica, desde que essas iniciativas sejam genuínas, isentas de interesses materiais. Todo individuo que honra as suas tradições familiares e sociais, sem não entanto sentir-se dono da verdade, deveria ter seu direito respeitado. Seus locais de reunião e divertimentos preservados.

Aqueles que não mantém em sua forma de vida o culto às tradições de seu povo, da sua família, da mesma forma, deveria ser deixado em paz com as suas crenças, costumes e hábitos, sem perturbar a vida dos outros.

Assim como um CTG ao seguir uma doutrina, ditada pelo MTG, se seus integrantes sentem-se confortáveis, porque tentar invadi-los ideologicamente ou em seus locais de reunião? Porquê tentar levar um grupo de tchê-music ou querer que se permita o maxixe em um CTG?

Na minha opinião é como querer impor numa igreja católica o culto da Assembléia de Deus ou Judaico ou um gremista tentar invadir o Beira Rio para que todos os colorados se convertam em gremistas.

Aqueles que sendo tradicionalistas possuem também o gosto por danças, músicas, culturas diferentes, devem ter liberdade e acesso às mesmas, pois não há interferências quando os sentimentos são genuínos. Um gaúcho que participa ativamente de um movimento tradicionalista pode e deve se gostar, participar de movimentos que preservam outras culturas, como a afro-baiana ou mesmo aqueles movimentos modernistas de músicas, danças, religiões.

As críticas quando proferidas com fundamentos deveriam ser aceitas e analisadas, pois funcionam como uma autocrítica quando não se tem a capacidade de ver os próprios erros. Já aquelas que são emitidas com outras intenções, deveriam ser desconsideradas e não polemizadas.

Mas muitas pessoas movidas por razões muitas vezes ocultas ou dúbias, dão a entender que fazem questão em criar polemica.

Creio que tanto o respeitado compositor Nei Lisboa como o nobre jornalista Giovani Grizotti, deveriam refletir sobre as suas opiniões e posições, mais em respeito a seu respectivo público e à sociedade do que a si mesmo.